sábado, 23 de setembro de 2017

Tornam-se milionários à custa dos mais pobres

I gual a si mesmo, Carlos Nuno Castel-Branco, cuja crítica já lhe fez parar na barra do Tribunal, voltou a tecer, esta semana, duras críticas contra a elite política nacional. Desta vez não citou nomes, mas o economista, para quem o processo político e económico nas últimas duas décadas, em Moçambique, tem se focado na formação de uma classe de capitalistas, sublinhou, em sede da V Conferência Internacional do Instituto de Estudos Sociais e Económicas (IESE), que as sucessivas crises que têm marcado a trajectória económica de Moçambique são parte orgânica do processo de acumulação de capital no país. E avisou que uma economia assim gerada, nem multiplica empregos decentes, muito menos reduz a pobreza, antes pelo contrário, cria milionários e reproduz as estruturas dependentes de expansão económica até ao ponto de ruptura que, no caso actual, foi cristalizada na crise da dívida. Falando das “Crises Económicas e a sua Lógica Histórica na Economia Moçambicana”, Castel-Branco anotou que, nos últimos 60 anos, a economia moçambicana foi sempre marcada por uma série de crises. Depois de escalpelizar a economia do país durante o período colonial até aos anos que se seguiram à independência, que também foram marcados por sucessivas crises, cada uma com as suas peculiaridades, o economista voltou-se para a história mais recente, tendo dito que, neste século XXI, dois indicadores sempre chamaram atenção sobre uma iminente ebulição da economia nacional. Trata-se de uma escalada de investimento externo e uma reduzida eficácia do crescimento económico em reduzir pobreza, bem como a redução dessa eficácia à medida que o crescimento económico acelera e o investimento aumenta. Debruçando-se sobre as condições estruturais de sustentabilidade da expansão da economia, Castel-Branco afirmou que não é muito difícil entender que uma economia só pode expandir em função da capacidade de sustentar essa expansão a longo prazo, o que significa que os novos sectores que entram na economia devem ser capazes de gerar recursos e energia necessários para sustentar a expansão, em vez de apenas viverem dos outros sectores. Chamou atenção de que isso é, particularmente, verdade para economias como a nossa, que tem uma base de exportação, que é de produtos primários, débil, frágil, volátil e concentrada em mercados não dinâmicos e que, além do mais, o resto da economia em expansão é muito exigente em termos de recursos que não está a gerar. Sublinhou a forte dependência do país pelo investimento externo e a sua concentração no núcleo extractivo e sectores adjacentes, cujo impacto real na economia, como a criação de emprego, é diminuto, para enfatizar que a sustentabilidade de impulsos acelerados neste tipo de economia depende do que acontece com os sectores que sustentam a economia e com a velocidade com que os novos sectores passam a criar novos recursos para a economia, em vez de apenas consumirem. “Se isto não é tão difícil de entender, então, porquê se reproduzem as crises ao longo da história”, perguntou, de forma retórica, a fonte, para quem, ao longo da história económica do país, nota-se a ocorrência e recorrência de crises de expansão económica que resultam em contracção, com medidas de austeridade que agravam essa contracção. É por isso que, para ele, embora o país tenha o que apelidou de crescimento brutal de endividamento, a causa primária da crise não é a dívida (interna e externa), muito menos a dívida ilícita em particular. Pelo contrário, defendeu, a dívida é uma consequência e não a causa primária da crise mais geral. Na óptica de Castel-Branco, o problema primário, esse sim, é a forma como os recursos e força de trabalho são expropriados, reorganizados e utilizados; a expansão e aumento das capacidades produtivas em algumas áreas e a sua contracção em outras, ao mesmo tempo que grupos sociais e comunidades são excluídos do acesso a essas capacidades em expansão; bem como a expansão da forma capitalista de organização a todas as esferas da sociedade, incluindo os recursos e serviços públicos, a seguran- ça social e as finanças. Entende que a crise vem também da forma particular como o processo de reorganização e expansão do capitalismo acontece em Moçambique, que é determinada pelo foco do processo político e económico nas últimas duas décadas, que é a formação de uma classe de capitalistas. “Revistas especializadas, como a Forbes, mostram que Moçambique é o País africano com uma taxa mais rá- pida de crescimento do grupo de milionários. Entre 2002 e 2014, o nú- mero de milionários moçambicanos duplicou, aumentando de um milhar, e o número de pobres aumentou em cerca de 2.1 milhões. Isto é, cada novo milionário custou um pouco mais de 2.000 pobres”, afirmou o economista que, em 2013, questionou a qualidade de liderança política do então presidente da República, Armando Guebuza e a direcção para que estava a levar o país. Para Carlos Nuno Castel-Branco, a formação de capitalistas, nas condi- ções de Moçambique, depende do acesso ao capital externo e, para o mobilizar, o Estado pós à sua disposição os recursos estratégicos e a sua capacidade de endividamento. Esta estratégia, avançou, foi concretizada através do que chama como as primeiras três ondas de expropriação do Estado, nomeadamente, as privatizações de empresas na década de 1990, a expropriação e privatização de recursos naturais estratégicos na última década e meia e o endividamento desenfreado do Estado na última década a favor do capital privado. E entende o economista que a resposta que está a ser dada à crise daí resultante é outra, a quarta, onda de expropriação do Estado, em que este assume a privatização às finan- ças públicas, a “financeirização” dos recursos estratégicos e a austeridade social. “A economia assim gerada nem multiplica empregos decentes, nem reduz a pobreza, embora crie milionários e reproduz as estruturas dependentes de expansão económica até ao ponto de ruptura que, neste caso específico, foi cristalizado na crise da dívida”, lamentou. Segundo ele, a crise moçambicana foi ainda exacerbada pelo contexto global, nomeadamente, a “financeirização” do capitalismo global (isto é, o domínio das formas especulativas fi- nanceiras sobre o processo global de reprodução da economia), as formas de integração da economia moçambicana no capitalismo global e as vá- rias crises nos mercados de produtos primários. Mas para Castel-Branco, não basta dizer que estamos expostos às tendências globais. “Moçambique ficou mais vulnerável a essas tendências globais pela forma como a gula por capital fez as classes capitalistas nacionais, com o apoio do Estado, expor Moçambique a essas vulnerabilidades – a mercados financeiros especulativos, à ira das instituições financeiras internacionais e à cada vez maior dependência de produtos primários”, esclareceu. Rejeitar a austeridade e eliminar dívida odiosa Para o economista, a saída desta encruzilhada passa, em primeiro lugar, por rejeitar a austeridade. Mas defende que, rejeitar a austeridade passa por duas coisas: primeiro entender o que a austeridade é, na sua dimensão mais complexa, desde os cortes nas despesas sociais, emprego, salários, inflação dos bens básicos de consumo, até ao aumento das restrições monetárias e das medidas anti-inflacionárias assentes no aumento da escassez e do preço do capital para a diversificação da base produtiva. Segundo, mostrar que a austeridade é injusta e ineficaz a resolver os problemas que diz pretender porque a austeridade cria novos problemas como a contracção da economia, da procura interna, ou seja, reforça as dinâmicas extractivas da economia. Para ele, em vez da austeridade, é preciso ir para outras respostas, como a mobilização de capacidade fiscal através da grande base económica que já existe, bastando aproveitar a grande capacidade fiscal ociosa, redireccionar o investimento público, o complexo mineral e energético e alargar a base produtiva. Indicou que outra coisa fundamental para relançar a economia moçambicana é a reestruturação da dívida. “A reestruturação da nossa dívida vai ter duas dimensões. Uma é a eliminação daquilo que é a dívida odiosa, dívida ilícita, que o povo, o Estado, e a economia não devem pagar. Mas para eliminar isso é preciso demonstrar que essa dívida é odiosa, isso quer dizer que foi contraída para servir objectivos privados à custa do público e não serve o País e demonstrar isso é preciso dizer quem bene- ficiou, etc., portanto, significa passar por uma fase também de identificar o problema a esse nível”, disse, explicando que a segunda dimensão da reestruturação é pegar no resto da dívida e renegociar os juros, prazos de pagamento, etc., para libertar a capacidade do Estado de poder desenvolver programas económicos e sociais numa base mais alargada sem serem dominados pelas dinâmicas de “financeirização” da dívida e dos recursos. O economista lamenta que o neoliberalismo e a “financeirização” tenham imposto a emergência e renascimento do nacionalismo econó- mico não só na Europa e nos Estados Unidos da América, mas em outras partes do mundo, onde o populismo de direita ganhou força – como em Moçambique, Tanzânia, África do Sol e Índia, onde a defesa e a promoção das classes capitalistas e seus interesses são deliberadamente confundidos com anti-imperialismo.

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