Não vivi directamente os acontecimentos de 27 de Maio (de 1977) nem a tragédia que a seguir se abateu sobre Angola. Por várias razões: primeiro, porque eu não estava inserido na sociedade e na ordem jurídica angolana; segundo, porque aquela fatídica data me surpreendeu na cadeia, à inteira disposição e à total mercê da DISA (Direcção de Informação e Segurança de Angola), que para muitos (de nós), foi pior que a PIDE/DGS; terceiro, porque pouco depois, pondo termo a uma breve estadia em território (des)governado pelo MPLA (de Junho de 1976 a Outubro de 1977, com um período de prisão de Novembro de 1976 a Junho de 1977), voltei a subtrair-me à autoridade revolucionária da RPA (República Popular de Angola) a 3 de Outubro daquele longínquo ano de 1977.

Por Frank Raskal
Mas, apesar de não ter vivido de perto tais acontecimentos, eles fazem parte das minhas memórias e das minhas reflexões.
O 27 de Maio nas minhas recordações. Embora eu estivesse às ordens e à inteira mercê da DISA (a vida, a liberdade, a integridade física, psicológica e moral, a honra e a dignidade encontravam-se na disposição desta), nessa altura, depois de ter vivido a fase dos interrogatórios e das torturas, encontrava-me na cadeia civil, onde o regime de internamento era mais favorável (um tanto mais humano e mais liberal).
Ali havia um aparelho de rádio, no refeitório, que nos permitia ouvir os noticiários. E tínhamos acesso ao Jornal de Angola: não nós (os reaccionários, fantoches e cães de fila do imperialismo internacional), mas os prisioneiros de delito comum, com os quais partilhávamos o refeitório, onde eles ficavam ao alcance (e não propriamente à disposição) de qualquer interessado.
Tanto a Rádio Nacional de Angola como o Jornal de Angola não eram meios de informação credíveis e objectivos, mas permitiam-nos acompanhar e compreender (com os necessários reajustes e as indispensáveis releituras) algumas das situações mais graves que Angola vivia ou nos quais se envolvia.
Foi assim que segui, salvo erro, no sábado que antecedeu aquele fatídico dia, o discurso em que Agostinho Neto denunciou o fraccionismo, desmascarou Nito Alves e José Van-Dúnem como líderes e anunciou a sua suspensão do Comité Central do MPLA (na altura, ainda movimento).
Graças àquelas circunstâncias, pude também acompanhar os acontecimentos do 27 de Maio que, se a minha memória não me trai, ocorreram na semana seguinte: a tomada da Rádio Nacional, o convite à população de Luanda a sair à rua naquela manhã, e as mortes que se registaram, de que creio termos tido conhecimento (pelo menos algumas delas) nas primeiras horas daquela mesma noite.
Foi assim que seguimos o discurso de Agostinho Neto, naquela noite (salvo erro), em cuja introdução disse que não haveria razões para fazer um outro discurso depois daquele que fizera dias antes (o da denúncia do fraccionismo), se não tivessem ocorrido, na cidade de Luanda, acontecimentos que considerava graves: graves… nomeadamente, porque morreram militantes (ou dirigentes?) do MPLA.
E segui também as ameaças e a expressão dos seus mais profundos sentimentos de vingança: «Não vamos perder tempo com julgamentos»… «seremos implacáveis»! Estas expressões, à semelhança das palavras introdutórias do discurso, ficaram para sempre gravadas na minha memória.
Soubemos então, a partir daquela noite, mas sobretudo nos dias seguintes, das mortes de Saidy Mingas, Nzaji, Garcia Neto, Dangereux, Eurico Gonçalves, Bakhalof, Eurico Veríssimo… Mas também de Monstro Imortal, este que seria um dos fraccionistas.
Quando saí da cadeia, em Junho de 1977, pude aperceber-me do desaparecimento de muitos dirigentes e responsáveis, tanto do MPLA e das suas organizações de massas, como do próprio Estado, em todos os seus órgãos e instituições. Não se sabia ao certo o seu destino, se eram detidos e encarcerados ou se eram pura e simplesmente executados, sem mais formalidades. É possível que ambas as soluções tenham sido aplicadas, consoante a personalidade e responsabilidade dos actores (ou vítimas) e das circunstâncias (de tempo, meio e lugar) em que eram apanhados.
Sentia-se um certo vazio. Não o sentia eu, que não pertencia àquela sociedade, mas nela estava apenas temporariamente, e de passagem, mas apercebia-me dele pelos comentários ou indiscrições de amigos e conhecidos. E havia um clima generalizado de medo, um ambiente sombrio e carregado…
Segui também, com medo, indignação e revolta, os inflamados editoriais publicados no Jornal de Angola e lidos nos solenes serviços noticiosos da Rádio Nacional de Angola: «Bater no ferro quente»… «Aquecer o ferro frio»…
E li as «crónicas?» que nos falavam da VCC (Víbora de Cabeça ao Contrário, numa clara e caluniosa referência a Nito Alves). Nesse sentido, tivemos em Angola uma antevisão da «Rádio das mil colinas», que seria de triste memória no genocídio do Rwanda, quase vinte anos mais tarde.
Finalmente, soube também da detenção de Nito Alves que, segundo a história então contada, teria conseguido fugir de Luanda e alcançar eventualmente as áreas onde tinha combatido o colonialismo português (Nambuangongo?), onde se teria escondido. Mas, acossado pela fome (e a sede), teria pedido ajuda a um aldeão, que o teria denunciado às autoridades, que o teriam prendido e levado de volta a Luanda…
Estas são, no essencial, as minhas memórias do 27 de Maio e das suas consequências imediatas e directas. Passemos agora às reflexões.
O 27 de Maio nas minhas reflexões. Como disse acima, eu não fazia parte daquela sociedade. Obrigado a procurar refúgio na República do Zaire (hoje RDC- República Democrática do Congo), na véspera da proclamação da independência de Angola, ali permaneci cerca de sete meses (Novembro de 1975/Junho de 1976). Ao entrar em território sob administração da República Popular de Angola, em Junho de 1976, não me apresentei às autoridades, e sobretudo à DISA (como era exigido): permaneci na minha aldeia, pensando que a situação podia evoluir em sentido um tanto mais favorável.
Detido em Novembro, na sequência de confrontos militares registados na área onde vivia, estive preso até Junho de 1977. Depois de viver e de trabalhar na RPA durante 3 meses (de Junho a Setembro), a 3 de Outubro deixei uma vez mais a sociedade angolana, naquilo que seria uma longa ausência (que duraria 21 anos), embora entrecortada por três ou quatro breves visitas, entre 1992 e 1997.
Devido à minha ausência de Angola, foi só muitos anos mais tarde que soube das atrocidades que tinham ocorrido depois do 27 de Maio e da hecatombe que tinham provocado.
A violência e os crimes que antecederam e acompanharam a criação (ou proclamação) da República Popular de Angola; a crueldade dos revolucionários, as torturas impiedosas e traumatizantes das FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola) e da DISA, a rejeição e o desprezo votado aos chamados fantoches, contra-revolucionários, cães de fila e lacaios do imperialismo, etc., eram coisas que eu conhecia muito bem. Mas então, as vítimas eram exclusivamente os cabindas e os angolanos que não eram militantes (nem simpatizantes) do MPLA. Os militantes do M (eme) eram intocáveis, quase sagrados.
Mas se as violações dos direitos humanos eram constantes; as prisões e detenções arbitrárias eram diárias; as execuções sumárias ou extrajudiciais eram sistemáticos, habituais e normais, também é verdade que, não obstante essa anormalidade normal, houve períodos cíclicos em que a violência generalizada atingiu o clímax e as atrocidades chegaram a níveis de crueldade particularmente graves.
Esses períodos foram, nas minhas reflexões, em primeiro lugar, a fase da independência, ou seja, o período que antecedeu a independência e o que se seguiu imediatamente a esta. Foi a fase da tomada do poder. O assalto ao poder caracterizou-se por uma guerra generalizada para expulsar os fantoches e os colonos e instituir o novo regime. Foi um período de perseguições, de torturas e crimes da mais acentuada crueldade. Bastava ser-se apodado de inimigo do MPLA, inimigo do Povo Angolano para ficar na mira dos revolucionários e correr os maiores riscos e perigos.
A segunda fase cíclica de violência, arbitrariedades, torturas e execuções sumárias por todo o lado, mas sobretudo nas prisões e nos campos de produção ou de concentração foi precisamente aquela iniciada pelos acontecimentos do 27 de Maio. Tratava-se de se combater o chamado fraccionismo, impedir o surgimento duma ala mais à esquerda ou mais à direita do MPLA, proteger a sua pureza ideológica e a integridade e continuidade da sua liderança, enfim, enfim, inviabilizar por todos os meios a tomada do poder por uma outra ala ou tendência do MPLA.
Foi esta, certamente, a maior hecatombe, pois fala-se de dezenas de milhares de vítimas (estimadas, de acordo com as fontes, entre trinta mil e oitenta mil!). Foi, portanto, terrível. E a originalidade desta tragédia é que vitimou sobretudo, quase exclusivamente, militantes e simpatizantes do MPLA e das suas organizações de massas. Disse-se na altura que o fraccionismo tinha invadido todas as estruturas do Estado e do MPLA, com excepção da Polícia (CPPA – Corpo de Polícia Popular de Angola)! Até sacrossanta, poderosa e temida DISA!
Como a condenação (arbitrária e empírica) tinha de ser antecedida da acusação, estes também passaram a ser apodados de inimigos do MPLA, inimigos do Povo Angolano! Grandes revolucionários e dirigentes acima de qualquer suspeita passaram a ser tidos como contra-revolucionários.
Período de intensa e tenebrosa actividade criminal, de massacres e perseguições generalizadas que, infelizmente, não seria o último, pois não impediria o de 1992/1993, no qual se insere a chamada sexta-feira sangrenta, em que o desafio era a democratização do regime: assegurar o poder no país, obter a vitória eleitoral e conseguir o reconhecimento internacional (ser o país tido como estado democrático e de direito e ganhar o MPLA o certificado de partido democrático e dirigente duma sociedade democrática, aberta e justa).
Estas são as minhas reflexões sobre aqueles acontecimentos de triste memória, de que celebramos mais um aniversário. Ao abordarmos tais acontecimentos na era do corrigir o que está mal (e melhorar o que está bem), presto a mais singela homenagem às vítimas (tanto os que foram sacrificados, massacrados, como aqueles que ficaram indelevelmente marcados, nomeadamente os herdeiros e parentes próximos); auguro que se faça justiça, não tanto no sentido de se punir eventuais autores (morais ou materiais) de tais actos, mas antes na preocupação de repor a verdade, debelar os efeitos e as sequelas ainda presentes de tais factos (regularizar os registos, identificar e dar sepultura condigna onde seja possível, proteger e assistir a quem tenha ficado «marginalizado» e definitivamente defraudado e injustiçado) e tirar as lições para o presente e o futuro. Enfim, reescrever a história, para evitar a repetição de tais atrocidades, crueldades e tragédias.
Paz, honra e dignidade aos mortos, às vítimas!
Paz, sossego e respeito aos vivos!
Coragem, verdade e fidelidade às testemunhas!
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